domingo, 6 de novembro de 2016
Da janela da nau, olhava o escuro como um quadro. Eram só oito horas, mas com o cheiro forte da madrugada. Em cima do horizonte incógnito, uma larga mancha amarela se arrastava. De certo era cana queimando, no seu espetáculo noturno e ilícito. Em baixo, nada decorava o pretume, se não as placas e as árvores enfiadas na terra. O farol da embarcação iluminava a encosta, revelando a terra vermelha e também a grama. Na melancolia da noite, traduziam-se em tons secos de musgo e de barro. Ao longo das horas esta mesma cena se repetia, envelopada num mormaço frio, onde não se sabe como sentir-se, se não num desconforto aflito, de quem quer ir embora mesmo sem entender o motivo. Sem sono, os sonhos se encadeavam contra o vidro.
De repente, algo de extraordinário brevemente se anuncia. Um campo de luzes inexplicadas, inumeráveis postes amarelados, fortes lanternas penduradas sem motivo. Nenhuma casa, nenhum campo debaixo delas, nem mesmo ruas eu via. Era como se tivessem sido instaladas pelas formigas. Com o movimento da barca, elas dançavam no céu, feito flores de fogo, presas no preto da noite. No fundo, um holofote atirava para cima, mas no princípio parecia uma luz divinal que de repente surge sem nenhuma profecia, perdida nas trevas, para ser vista por poucos. Assim, brevemente me sentia como uma comungante na fila da Eucaristia, que mesmo em dois mil, olha e vê o milagre. Depois de andar ainda mais, também a usina era um espetáculo. Suas estruturas e tubos, todos bem iluminados, sempre pelo mesmo tom quente de amarelo, ao contrário da frieza daquele branco urbano, pareciam um imenso robô que se deitava na noite, respirando fumaças brancas, pacífico até que acordasse com o orvalho molhando sua lata.
Que se pode esperar da viagem? Saí quando ainda era sol, com a saciedade a embalar um sono promissor. Mas sempre interrompe a secura de uma metade, com sua escuridão e a morte doce ou salgada de seus intervalos. Quem viaja às cinco da tarde? O fim da viagem é viajar novamente, a isto não se escapa.
Sem nenhuma euforia, olhava a janela e por vezes havia um sorriso. Ainda que essa tristeza tingisse a noite, não podia evitar estar viva. Este viver não é o estar de pé ou o respirar. Foi-me ensinado. É tudo o que basta, e o que precisamos e buscamos, sem sabê-lo. Com ele, mesmo se me engolisse aquele breu desconhecido do lado de fora, num abandono de todo farol e toda lanterna, ainda que houvesse um profundo medo, e nem mesmo aquele milagroso holofote pudesse aliviar o escuro, poderia andar como uma onça, vagarosamente, até o meu ponto final.