terça, 21 de fevereiro de 2017

Tem chovido há cinco dias
correndo
o mundo é
uma poça redonda
de água sem sol
onde pequenas ilhas
estão somente começando
a lidar
um jovem menino
no meu jardim
está tirando água
do seu canteiro de flores
quando eu lhe pergunto por que
ele me diz
jovens sementes que nunca viram o sol
esquecem
e se afogam facilmente.

-- Audre Lorde

Desde muito longe o casco da embarcação vem se arrastando, rasgando por entre os cardumes e destruindo os corais. Já tão cansado, cheio dos desenhos das águas que cortou, pode-se ver que em parte deseja desfazer-se, diluir-se na água salgada, sem medos nem receios. Deseja cantar, como uma baleia no imenso do oceano, sem esperar que nada nem ninguém lhe ouça ou aplauda, sem esperar nem mesmo o eco do abismo. E também, ao mesmo tempo, quer endurecer-se, tornar-se numa pedra, um diamante. Tornar-se um adorno num pescoço. Quer consertar alguma coisa quebrada, esboçar os desenhos do mundo. Algo lhe impele a persistir indeciso, algo que não se sabe o nome, mas que a tudo divide, dilacera e carrega na fumaça dos dias. Às vezes arde com tal brasa, com um calor jamais visto, nem mesmo nas línguas do inferno, na febre do próprio diabo. Em outros dias, uma frieza, algo que começa desde embaixo. O corpo esguio, de ossos que aparecem tão fácil, não tem com o que resistir ao clima, e mesmo assim sempre o aguenta...

Insistentemente aceno para a encosta, tendo já levantado a âncora e içado as velas, com as bênçãos do vento convicto e bruto. Mas a maré derradeira tudo devolve à praia. Eu olho os caranguejos andando de lado, e meus olhos cansados se fecham e sonham, sabendo do rosto que via ali. Por um minuto o barulho das ondas me engole, e nenhuma criança brinca na areia molhada.

Em cima de tudo as nuvens se arrastam, amarradas umas nas outras e nos ventos do céu. Um azul imenso encobre a madrugada. Ainda são quatro horas, e o meu relógio bate sem pressa. Tudo ao redor pode ser visto. Nem uma única palmeira interrompe o horizonte. A abóbada inteira, nua por completo, oferece-se aos olhos, sem vergonha. Enxergando as pedras ao longe, as vilas e as casas, as vitórias-régias, penso que lá poderia achar palavras, licores, e me sento na beira do barco sorrindo, e os peixes choram e riem de nervoso, pedindo com esperança e ternura, que lhes ensine a contar estrelas e prever quando a Lua aparece de novo.

Na madeira do convés me ajoelho, e da bolsa de lona arranco os diários. Suas capas de couro marcadas do tempo, têm manchas pretas, de carvão e de giz. Lendo as palavras escritas com tinta, uma tristeza gigante se espalha no cais: ondas batendo nos muros de pedra das cidades de areia que erigi. Um a um eu os incendeio, e a fumaça empilha tão bela coluna, que ninguém jamais a poderia imitar. Eu olho e espero, meu rosto em silêncio, até que o fogo me deixa sozinha. Do céu de repente o claro se escorre, e as estrelas acendem a água brilhosa. Queimo na brasa um pedaço de palha, e com ele o primeiro cachimbo do mês. Meus ombros se encaixam no vento marinho, e eu olho as garrafas vazias rolando, ainda com os cheiros fortes do rum. No virar desta noite, junto com o Sol não há nada chegando. Nem as sereias, nem os piratas. Nem mesmo os peixes de hoje regressarão. De manhã, só o que está aqui agora amanhecerá comigo. Um longo e imenso suspiro me arrasta, "Aaaaaah!"