quarta, 21 de março de 2018

de repente a neve num fôlego, depressa cobrindo os telhados em V. as pontas e as retas num branco aguado, as pretas linhas sólidas da casa a morrer. me agacho e olho as curvas fazendo, descendo sem olhos no ar onde sopro, engulo em vão sem nada a sentir, somente este enjoo de vinte e dois anos, e um luto crescendo do mundo daqui.

os corvos também assustados gorjeiam, tais como patos aflitos de frio, voando no meio da guerra de flocos, bombas sutis no concreto molhado, nos cantos dos muros o vento se prende, vai num só mergulho ao chão como um jato, alvos confetes - besouros de pano, cruas e fortes ondas do sul.

na calha de ferro defronte aos meus pés, a água calada escorre à paisana, tão parca e silente, de uma discrição solitária, indo embora na terra pra deitar-se no rio.

e as flores do lado de fora esperam, imóveis de cores no surdo do gelo, deixando-se vestir por completo ao avesso, ainda que numa angústia dos graus, segurando em si a primavera infantil, como se dissessem adeus num suspiro, olhando-lhe os fios, suas espirais tortuosas, seu sadismo inato e com a morte seus laços, o seu saber que assim, cheia dela seria, do último dia a paisagem de sal.

a terra coberta de uma noite sem lua, sem poetas ou budas, sem ouro ou marfim... somente o zunido, o inaudível barulho perdido, o fundo do fundo do escuro, como um gigantesco navio pouco a pouco se enchendo, de águas polares sem luzes, sem sombras, num gole sumindo nos beiços do mar, sem fogo, sem formas, sem nada, nem um único canto distante e medonho, de uma imensa baleia ancestral, a nadar por mil anos sozinha, procurando na invernia das águas de linho, companhias ou filhas, navios esquadrilhas, morosa arrastando-se sem mais nostalgias, ouvindo o eco repetido mil vezes, no seu infinito e vazio radar.