quinta, 18 de abril de 2019
No meu próprio tempo também devoro. Quero abrir a boca até soltarem-se os côndilos, num ângulo negativo, lentamente como um monstro marinho, imenso, inevitável... Neste meu próprio tempo procuro coisas preciosas que só encontro nele. E lá encontro por vezes algo tão raro, tão grande que consigo suster uma respiração só por horas e horas, ou mesmo dias. São coisas muito pequenas que nos atravessam. No outro tempo. O tempo que passa zunindo e que elege presidentes mas não derruba-os, que faz saírem moedas e notas da caixinha, neste tempo, onde há perfeição, e uma felicidade nostálgica, estranhamente perfeita, cheia de sombras e acidentes bizarros, mas ainda assim algo como uma outra infância, uma exploração do fascínio, uma entrega pelo que é não somente bom como o concebem nas igrejas mas, muito antes disso, curioso, uma exploração do caminho a que a vida naturalmente leva quando assim vivida, e como te carrega na direção que você caiu, como se não dependesse mais de alguém te aceitar ou não porque te aceitam de verdade e você não precisa ter coragem o tempo todo... Não basta se realizar e sorrir, sendo feliz, sem este revés. Sem isso, não passa de euforia. Você não pode acreditar em um espetáculo. Ou desejar uma felicidade maior do que aquela que possui quando está só. É como não querer envolver-se com os outros por desejo de conhecer a si. É um desengano. Mas quem está neste tempo? neste tempo estou só: quase ninguém me visita nele. Tenho que ser tudo isso, ser, ser um corpo assim, vivo, e como é forte a pressão que vem quando pega-se o corpo e o coloca no mundo... Como se exige de cada corpo só por estar presente, é visível a tensão na qual vive quase todo corpo, sempre tenso e confuso, ainda que convicto, é difícil, ter que suster uma tranquilidade tão rara e difícil para poder demonstrar na prática que seu corpo não merece ser menos do que isto, este corpo no mundo, nem produtor, nem produto (...)