Manhã, Majestade

quarta, 17 de agosto de 2022

Fotografia de uma gata preta à frente de um computador. O computador está com a parte traseira voltada para a frente e é possível ver suas saídas de ar. Há cadernos, um juzu, caneca e apetrechos de papelaria na mesa. Sobre o computador, uma estatueta da Tara Verde e uma caixa de incensos com outro juzu pendurado. Em cima do monitor do computador há a inscrição "Memento mori". A imagem tem um filtro que a reduz apenas a algumas linhas e cores de azul, roxo, amarelo, verde e rosa.

Chegaram as chuvas do inverno, e com elas também palavras sem fim inundando minha cabeça. As palavras reverberam, multiplicam, eu não consigo deixar de chupá-las como se bebesse no deserto. Eu encontro a força da criação, eu encontro as minhas próprias veias, e eu faço a transfusão. Estou reposta. Eu havia dito que o tempo era escasso, mas o Tempo é um falar e ouvir sem paredes, sem muros, sem fronteiras. Quem irá conter?

Não me interesso pelo debate. Também não quero a convicção. Estou desde antes já ouvindo em excesso, mas palavras sem a mínima consideração são um enorme desperdício. Queria esticar essa manhã até o último grão de uma montanha ser varrido, letra atrás de letra, uma por uma, poesia um lençol onde o corpo deita limpo, sem a frieza da luz noturna, sem a ânsia que eu sinto na rua, sem as memórias de medo que enfiam nos fios, sem as ameaças de controle de famílias e polícias, nada disso.

O Tempo é uma noite que acorda o mundo do avesso, ela é uma morte que prefere a transformação à ressurreição. Não quer repetir. Não quer imortalizar. Não quer instituir ou controlar. O Tempo, Senhora, não observa calada.

Eu coloquei mais uma vez um pé após o outro, cada vez e de novo, eu ouço caírem os pingos da chuva e eu ouço atrás do muro uma casa ser enxaguada e tudo é água. No calendário, os dias que chegam me trazem vontade. Eu estou longe de tudo aquilo que me ameaçou um dia, eu cortei apegos e dependências químicas, e aqui, na retina branca desse céu nublado, onde raramente chove, faroeste paulista, eu quebro os ovos da serpente, seu ninho revirado por duas gatas pretas -- a mais jovem e violenta, e a que rosna ao invés de miar.

A força que me acomete não é a da verdade. A força que me acomete não é a da guerra. Mas a guerra é onde cada dia é vivido. Do chão, não resta uma única mancha. Os talheres estão limpos, são cinco colheres pretas e quatro com cabos coloridos.

Amanhã, serão outras cores. No dia depois daquele, ainda outras. A Rosa do Deserto deve estar respirando aliviada, crescendo suas raízes como quem se alonga depois de ficar apertada em uma caixa.

Como posso não me esquecer de sentir também os nervos dela, e não somente os meus? Logo ao lado, atrás dessa parede, a cada segundo ela coloca toda sua força em beber o Sol, em esticar seus galhos, em abrir-se em flor, mas maior ainda ela estica suas pernas, talvez sinta-se como uma multidão de centopeias, como se tivesse infinitos dedos, buscando no espaço toda direção. Flore e derruba as flores murchas no chão. Nunca foram para a admiração humana. Prossegue e concentra, sem jamais vacilar do seu centro.

Há três pesados sacos de terra onde mais vida poderá ser plantada e nessa manhã nada de muito útil, mas todo o necessário. Eu encontrei vozes que cantavam, e com os pés no molhado, eu abri esse portão com a chave das suas palavras. Deixei que derramasse, até o excesso da ressaca.

Você saiu para a batalha, eu sei que o seu peito queimava porque sou também tão inflamável. Do lado de dentro da parede fria, um pano cor-de-rosa desliza, mais uma vez, a mesa deposta brilha vazia: espaço ilimitado, seu reino, meu agradecimento.