Diários da casa dobrada 002

terça, 19 de novembro de 2019

Tudo está em tradução. Sem subestimar você nunca teria um mercado de estudantes pra explorar. Estamos sempre vertendo. É preciso. Vamos fazendo a língua — eles correm atrás. Nós estamos sempre ouvindo e refazendo esse pão que querem tirar. Preservamos e tiramos o pó. Há quem queira colocar mais pressão, mas tudo está dizendo que o caminho é o de arrancar essas fronteiras do chão e dar de todo o coração até que se extingua esta medicina que o havia separado do restante do meu corpo e o desejado para apartar seu desejo reprimido. Estou só tentando firmar meus pés de novo. Eu já estou formada, todo este corpo já foi e já voltou, sempre torna-se assim mas é tanto para um só corpo, como se o espaço fosse pouco, e se não posso escrever, de fato escapo. Vou sempre tentando pagar a conta dessa letra escrita, é ela no fim que eu busco. Quero ouvi-la ser dita, cantada, quero lambê-la, vê-la ser escrita, e lida, sentir o cheiro dela quando faz cheiro, e se ela dança quero ser sua bailarina. Os olhos fixam-se sempre no corpo mas não é por isso que somos importantes. É lindo tornar até mesmo o corpo poderoso, mas é no desajuste que alguém se fixa e aí nasce todo o restante. Você quer empoderar-se mas isso exige um cuidado que a dor da culpa ensina mal. Se o poder que você conhece é o deste deus da morte que nas igrejas se cultua, quem irá segurar a sua ira? Em tudo estará o diabo, como se pudesse também possuí-la? Não queria explicar-me de novo e de novo. Se alguém se fixa demais nisso então a carne vira um objeto. A carne é uma continuidade, uma ligação imediata com o todo, não existe lá a carne e então uma outra coisa. Não há pecado. Olho o corpo e vejo isso. Se ele engana ou fere, é natural que se corrige mas o que eu faço com o invisível? Se sou eu também só véu tênue de censura na tua ecologia — Como posso viver com você se sinto que quando me ver perder o controle vai partir para cima como se fosse sua oportunidade de atacar e punir feito polícia? O corpo que quer ser outra coisa é que complica-se. Não conhece o amor, então também o separa e faz em outra coisa, um conjunto de demonstrações. E as procura. Faz isso também com a mente. Assim considera a inteligência como separada da sabedoria, externa, mística, para ser alcançada na distância. Antes e depois de topar com um dos dois já está aflito. Retêm o saber e crê ser sua transmissão impossível. Isto nulifica o sujeito, ele torna-se nada, então preenche este nada com os objetos já que sobre eles não se esperava que pudesse ter aprendido... Diz ter sido separado e se acomoda na busca por ser reunido. Este movimento é eterno, e não posso perder um segundo dessa vida, nem colocar ela em nada. Ou sou ela toda ou estou perdida. Se alguém insinua que sou complicada demais é porque está preparando-se para me trucidar. Já assisti todos os filmes. Você não pode olhar a carne e querer dela mais do que é. Não pode sonhar com a pureza e depois querer o prazer. Não pode. Querer rebelar-se e depois impor-se. Não quero repetir, ser pessoa, personalidade, só isso, quando sinto inchando na caixa torácica que minha sobrevivência está ameaçada, e que só não o digo porque a sobrevivência me foi tirada como palavra, porque quiseram garanti-la, quiseram fornecê-la, torná-la em propriedade quantificada, isso já é palavra cantada desse coral de superegas implantadas, mas é de um tédio enorme ter de adequar-se a esta cultura e suas tanatocracias quando eu poderia, poderia, não posso ter outro poder que não o meu, outra cara que não a minha, outra experiência e outra fome de criação que a minha. Olho este oceano inteiro e sei que não é para alguém tão mesquinho quanto um deus que se deveria entregar essa vida. Às vezes alguém tenta me pressionar com as armas que eu mesma aprendi a usar para defender-me. Preciso olhar por muito tempo para entender. Mas uma hora eu sempre chego.