Naquela Estação

terça, 18 de abril de 2017

A porta se fechou com seus cliques metálicos, e cada estalo estava solto e calado na imensidão do banheiro. Não para se aliviar de qualquer aflição no ventre, mas para olhar o espelho, ela tinha entrado. Encontrando seus olhos contra a luz forte, e sentindo-se verdadeira no reflexo, ela por um momento perdeu-se olhando cada detalhe. Olhou nos seus olhos, as fibras de seus lábios, suas manchas de nascença. Olhou para suas roupas, para seu cabelo. Naqueles instantes estava imersa, uma excitação sutil, quase imperceptível, lhe tomava a cada mergulho na solidão, ainda que frágil e temporária como aquela. Mas logo reparou quão raso na verdade o espelho era, e na superfície gelada do vidro sua imagem já era como um quadro que, por acaso, se movia. As mãos foram até a porta, e novamente ela ouviu seus barulhos anunciando que de novo seu mundo se diluía na imensidão. Os lábios se preparavam para sorrir, ao mesmo tempo sinceros e aflitos.

Caminhando até a sala, nenhuma excitação lhe percorria o estômago. Havia somente a mesma incerteza que lhe acompanhava desde o nascimento. O menino estava sentado no sofá, com o mesmo sorriso que ela, pendurado na paisagem do apartamento como alguém que espera o Sol nascer. Ela sentou-se do lado dele, como se devesse. Olharam-se imediatamente nos olhos, porque isto também era devido. Dentro dos olhos um do outro, nadavam devagar, cheios de tudo que não compreendiam, crentes nas ofertas que não estavam sendo feitas, e desejando intimamente, com a esperança de fazê-lo num uníssono. Estar assim era raro, mas ela se lembrava, não podia evitar lembrar-se, de como aqueles olhos eram rasos também. E de repente já pareciam ter um brilho fosco, e nada passava para além de sua retina, nenhum significado, nenhuma esperança, nada senão um rosto, uma tira de carne, esticada sobre ossos, cheia de buracos. Ele falava coisas que eram de seu comum acordo, e dizia que o mundo isto e aquilo, ou fazia promessas com docilidade. Ela respondia, dizia algo que lhe parecesse razoável, até certa medida queria entregar-se e tentar viver alguma coisa. Sabia que o que dizia era verdade, mas sabia também que não tinha importância nenhuma. Por que não podiam simplesmente calar-se, e enxergar, ao mesmo tempo? Ela estava pronta, à beira da verdade, disposta até mesmo a mergulhar de volta na tristeza imensa à qual tudo sempre lhe havia conduzido, não por qualquer patologia, mas porque a vida não era nenhuma euforia, simplesmente por se ter deixado conduzir, às vezes firmemente consciente, às vezes deslizando, as unhas dos dedões raspando no chão sem fazer barulho.

Eventualmente algo esperado se anunciava, com os sinais das suas mãos. Ele se aproximava e recuava, sempre sorrindo. Sem recusa, ela lhe olhava nos olhos, como vidros na neblina, e se beijavam com o mesmo misto de pouca e alguma emoção. De onde vinha aquela ansiedade? Os olhos dele fechavam, para procurar algo que ninguém encontrava. Aquilo, de novo, num retorno, como das outras vezes. Seu coração pulsava devagar, e uma ansiedade fraquejante lhe tomou todo o corpo. Ela parou de beijá-lo e levantou-se. Sorrisos automáticos apareciam, e palavras dóceis conduziram o menino à porta. Indo embora, ele parecia tranquilo, pois também não queria parecer qualquer outra coisa. Ela fechou a porta, sabendo de tudo que havia sido dito, entremeado no que não disseram. Ela sabia de tudo que podia ser suposto, sabia de cada coisa que estava às claras e, ao mesmo tempo, das quais não poderia jamais ser acusada. Já não sabendo não fingir, vivia como alguém mais que aprendeu a agir adequadamente.

Seus pés começam a caminhar para a mesa no quarto, onde um computador derramava uma luz azul sobre o colchão. Ela mergulha, desta vez se esquecendo completamente, e por duas horas inteiras se consome em memórias e planos. Estava a sós com tudo o que não era humano, só pura intermediação. Quando a fome lhe visitou, percebeu também como a tela do computador era plana e se levantou. Na cozinha encontrou os fantasmas no silêncio. Olhando o cacto na janela, esqueceu-se por um segundo de tudo, admirando o quanto ele e ela haviam crescido.

De manhã, foi à padaria encontrar-se com alguém. Quem era mesmo? Ele aparentava estar contente, e ela também. Aparentava. Sabendo disso ela se perguntava se por dentro talvez ele não estivesse, também, quebradiço e com o gosto de areia entre os dentes. Procurava nos seus olhos alguma fascinação, mas também eram foscos e imóveis, como os olhos de um boneco. Quando foram embora, e despediram-se, ela sentiu na firmeza de suas mãos uma esperança sutil, como se tivesse em si algo de um propósito ou uma energia de estar vivendo. As memórias lhe levaram para casa. Conforme suas pernas subiam a ladeira, e sua cabeça falava, na barriga o café se revirava e uma má digestão irrompia. Mas estava tão acostumada àquela sensação insuportável no seu estômago que não era capaz de perceber. De frente ao espelho, encontrou alguma vivacidade olhando para seus próprios olhos, e ao tirar as roupas, sentiu-se bonita. Por que só ela e o cacto lhe pareciam ter vida?

A água quente contra sua cabeça passava despercebida naquela noite, embora fosse um prazer de longa data. Algo estava preso na sua respiração, e ela não sabia o que era, só sabia perder-se na sensação de ter algo ainda por fazer, mesmo que não tivesse nada. Secou-se e sentou na mesa da sala, olhando na janela duas pombas brancas limpando uma à outra. O céu ainda estava azulado, e cheio de pequenas nuvens. Andando nervosos nessa paisagem, seus olhos encontraram de repente a Lua crescendo calada num canto, e seu corpo todo foi tomado numa fraqueza de água. Talvez tivesse sentido, naquele instante, coçar uma fortuita vontade de chorar em baixo do peito, mas não sabia discernir se o era realmente. Paralisada com o branco intenso da curva gelada, levou as mãos ao rosto querendo sentir-se aquecida. e viu que suas unhas estavam grandes. Exclamou então com surpresa, conforme seus dentes se abriram num sorriso: "Aaaah!"