O céu e os prédios

quinta, 23 de fevereiro de 2017

Por uma hora inteira o granizo bateu na parede, e agora o chuvisco despenca sem alarde. Os escritórios ainda estão acesos, mesmo a tarde caindo devagar junto com a chuva. As nuvens engolem a cidade, e junto com ela as paredes do quarto, o metal da janela, e as cinzas recém queimadas, caindo aos estalos na água. Na rua os corpos passeiam, cheios do mundo, provocando em mim uma sempre insistente hesitação. Queria que alguém estivesse aqui, e que me deixasse em paz. Como sempre, minha bexiga me importuna, nunca satisfeita. Eu olho pela janela, o céu e os prédios.

No muro do prédio vizinho, uma janela me mostra o banheiro. Uma mulher entra e lava as mãos, e eu não a olho nos olhos. É tão doce estar só. Minhas unhas cresceram, e grandes elas me provocam. As mordo com os dentes, sem deixar que se partam. O barulho do fósforo. Uma calma imensa, e com ela, nenhum medo do mundo. Com isto, também, uma preguiça sem fim. Tudo vai acabar tão logo…

Criaram-me para suster o simbólico. A exatidão pouco me interessa. Minha força é a força de uma menina. Minha vida será, não posso evitar, a vida de uma menina. Sei que já há muito tempo tenho sido assim, alguém que se senta e não diz nada, que olha a própria sede no escuro, que fuma um cigarro na casa vazia. Há, sim, um forte e pujante desejo, e eu já sei como satisfazê-lo, só me falta provar ser capaz. Não nasci para produzir nem criar nada. Vou morrer e nem os ossos ficarão. Sou o avesso de tudo que me ofereceram. O lado de trás, o contrário. Minha natureza é dizer não, e há tanta gente que quer ouvir justamente isto…

Quero ouvir tudo que você tem a dizer, e irei lhe obedecer diligentemente, mas jamais me enganarei de novo. Não sei mais fingir e fazer as vistas... Olho a sujeira e limpo. Se me pede para mentir, eu minto, mas não sei mais me enganar. Há tanta coisa que não dá para resolver por cima de uma mesa de restaurante, dizendo isto e aquilo, concordando e achando que temos algum consenso. São pregos na parede, onde amarramos os barbantes.

Há em mim uma lealdade inesgotável. Não me interessa fugir e roubar do pomar de ninguém. A grama do vizinho está seca. Não quero nada seu, e lhe ofereço tudo o que tenho. Sei que é capaz de segurá-lo, já que é tão leve, mas também sei que um dia é você que vai querer conhecer outras coisas… E eu não te culpo por isso. Sou mesmo um tédio irrestrito. Não tenho nada de intenso a oferecer, se não a secura dos dias. Beba comigo até que a garrafa fique vazia. Coloque os dedos pelo bocal.

Conheci os dois lados do todo. Já sei o que quero, e por isso mesmo decidi ir embora. É de um cinismo tão grande estar viva. Fingir que se entende o que o outro diz. Que se sabe a pergunta e a resposta. Depois de um tempo aqui, você repara: não há nada para dizer, e mesmo assim, todos querem ouvir a mesma coisa. A vida é uma ordem. Sempre se está procurando alguém para oferecer nos sacrifícios. Que problema há em levantar a mão e ser a oferenda? Queimar completamente, sem deixar nem mesmo as cinzas…

Olhando fotos antigas, vejo como nunca nos conhecemos. Ninguém nunca saberá quem é o outro, mas por um momento pensamos ser assim. Eu olho um rosto nas fotos e me vem uma fraqueza de água, e meu corpo todo se estica aos extremos, quase rompendo esta pele pálida e adoentada. Mas também há fotos tão mais remotas… E nelas, no meu rosto infantil, eu encontro uma tranquilidade imensa. Vejo que eu sempre estive aqui, e não foi nenhum pecado termos errado tanto. Que me enchi de tantas crenças, e que você também é só outro crédulo, inocente, que como eu está planando nas rajadas do mundo…

Hoje durmo tarde, não estou com medo de estar triste. Eu ainda tenho as fotografias todas. E nelas está impresso um perdão irrestrito a todos os erros que cometemos. Sempre estivemos buscando, desde lá, tornarmo-nos o que nos tornamos. Talvez nunca tivéssemos nos nossos próprios planos, e é muito fortuito que tenhamos nos ajudado a chegar aonde nos separamos.

Que se pode fazer com o Sol depois que já nasceu? Ninguém pode dizer que não tem medo. A solidão é sempre pulsante, e repetidamente nos pede um suspiro profundo. Ás vezes há uma saciedade inebriante, e às vezes só podemos deitar no chão, e lembrar que chorar, ou não conseguir fazê-lo, são também formas de estar viva. Ás vezes quero me abster de tudo, mas já é suficiente o que me foi arrancado até agora.