O Corpo que o Rio Levou

sexta, 14 de abril de 2017

me lembro dele
todo por dentro
com suas marcas de cansaço
e os cabelos embaraçados
que ninguém podia pentear

tinha uma pele tão fina
que tão fácil rasgava
e manchas de cores
mudando sem parar

era tão liso, tão sutil
eu o pintava com cuidado
e olhava no espelho
polindo suas arestas redondas

pendurava panos
e passava enfeites de madeira
nas suas pontas soltas
todos olhavam
o corpo que o rio levou

ele sentava e sorria
deitava e chorava
recebia tantas visitas
que entravam e saíam
sem medo de se afogar

andava sem medo
sozinho e cheio de amigos
a morder as unhas
nadando tranquilo no oceano
sem saber das arraias

era todo opaco
de cores sempre neutras
discreto e soberbo
eu também gostava
do corpo que o rio levou

mas algo lhe atravessava
desde entre as pernas
com uma firmeza violenta
e as linhas firmes do mundo
rasgaram de uma ponta à outra
o corpo que o rio levou

dilacerado assim
queria desfazer-se
no meio da fumaça
e ir embora de novo
tão cedo quanto pudesse

estava preso e aflito
procurando as chaves na grama
com pulsos cerrados
e lábios partidos
não flertava com nada

de repente
sem avisar a ninguém
foi embora nas águas de ontem
mas seu esqueleto ergueu-se
ficou, numa nudez absoluta
e acenou irreconhecível para todos
– sem resposta –

escorreram, com o rio,
os amigos e os amores
os tapetes, os talheres,
seis vidas vividas e ainda
o rio…