Ranço

domingo, 7 de março de 2021

Ranço eu também tenho
da máscara
como me desgasta...

Ranço tenho
da indiferença
da insensibilidade
da colonialidade
da branca
cômoda
hipertípica
hiperpsi
psiquiátrica normalidade

repito
que tenho direito
à identidade
à dignidade
a acessar epistemes
fora deste legado raso

quando falo deste meu
e não do teu
acho que curo
me curo
procuro
repensar com quem falo
quem no futuro também como eu
se ler
sentirá como alcançar-lhe?

medo?
do medo
só do medo
do pânico
da dúvida
do engano

de passar muito mais que pano
pagar o preço
sem medo
corpo nu
solto
e do avesso
todo olhar é estranho
todo dia uma puberdade inteira eu cresço

atacar é bom
é bom subir o tom
defesa passiva
empatia lisa
não me ativa

eu não entendo brincadeira
minha malícia é reversa
nadando contra cheguei numa encosta que é longe
se espante
me olhe estou tensa
ansiosa espremida
estava apagada a luz da minha vida
mas aqui colocada tenho cada chave da minha própria saída
entre uma tela e outra tento ler sutras na janela
escrevo na parede
e vaza
respinga a tinta amarela

não ando sozinha nunca estou
sozinha
minha vida é a sua vida
você terá que mudar recuso-me a te atacar vou queimar livros pra estourar pipoca pra saltear ervilhas
bicha duvida?
faço vacinas com um veneno que não achei alguém que aguente se explica
então aqui fica

me evita

tudo me indica
que devo pensar não só acredita: a crença é só uma outra linha
me deixa ser minha
quero ter só o que sei que preciso
cuide do que é seu e assim vamos ter o que cuidar quando nascerem flores dos nossos ovos chocados com
fé
fé na pandaka autista
quebrando preceitos
na contramão

traduza a voz
da bodhisattva antibinária maitreya no útero de uma mulher travertida
que traverteu a água onde atravessam homens perdidos
héteros pecados fascistas
binária protobiologia
segura essas palavras são minhas
se não ouviu ainda essa voz então repita
imprima
quantos anos precisamos voltar essa fita?
regrida desfaça e agora está viva
sinta o sabor da comida

justificações
explicações
não interessam
não sou juíza nem polícia
não cobro pecados
não mando pro inferno
invado e rasgo
dos portões os cadeados
não roubo mais
do que carrego

tão infantil
falar como me sinto
regredir

sinto
só sinto
não há nada para explicar
só sentir
se ouvindo
nada para resolver
só ouvir
e sentir de novo
lido e relido
não religo
nada foi interrompido

pra que falar
como me sinto
se só me repito?

pra que escrever
uma só letra
se anatta?

melhor seria
cortar apagar matar
essa voz insuportável

querendo expressar-se
defender-se
existir

existir

quem quer prevalecer?
mato
quem quer o controle e a perfeição?
mato
para quem nunca está bom?
mato
o mestre dourado no trono sentado
mato
buda
mato
o pecado
meu capricho e orgulho
mato
meu limite atravessado
todo autocuidado limitado
mato
minha desorganização meu não-espaço
mato
meu tempo parado meu desentendimento
mato
essa episteme imposta
essa identidade
escolhida por um macho
mato
com a minha dignidade o que eu faço?
me abraço
choro do seu lado
pra quê?
seu choro é um pedido
pra continuar a ser e sofrer
pago
nesse ritmo cansado
sobrecarregado
planto
para comer
pancs que recolho do mato
é banquete
engrossa
ferve de novo o caldo
e repasso

segunda, 15 de fevereiro de 2021