regai os lírios do campo

domingo, 12 de outubro de 2014

Para chorar, olhe para os ninhos. E veja nos olhos sem cílios dos pássaros, dos filhotes intrusos dos cucos, ingratos e malvindos, a agonia da fome. No ninho imóvel, enxergue-a, a fome. Olhe para a miséria de uma única mãe cujo único vômito serve para um único filho. E por um segundo evite pensar que ela não sofre. Lembre-se de dentro das nossas entranhas, onde nas nossas barrigas não passeiam pelos entraves ânsias emocionais do nosso próprio vômito, que ninguém vai comer, porque não há nada além de bile, e o vazio sensível da fome. Para chorar, atente-se ao mundo exterior e a ele somente, e deixe-se consumir devagar até perceber a artificialidade frágil dele, e o teu pertencimento a este mesmo mundo, teu papel de bicho, como o filhote do cuco dentro do ovo, e do ovo dentro da mãe, e de como a mãe é ela o próprio mundo. Para chorar, perceba a tua união inseparável com o que é externo, o teu pertencimento a esta fábrica de fome, e observe com sinistra e metódica paciência as pilhas de comida podre do outro lado da rua. Desliza a céu aberto pela sarjeta o vômito áspero da burguesia. Para chorar, olhe para as leitoras de códigos de barras dos mercados, onde leem-se as coisas que aquela mãe não irá vomitar. E trave teus olhos na agonia destes filhotes, no fardo fisiológico feito de acidente, na cápsula de cálcio que escamoteia um futuro ser que já sofre. Para chorar, perceba como não há momento onde crescemos, mas que antes da casca do ovo quebrar-se já sentiremos fome se quem nos gesta não come, que onde quer que passemos a existir já chegamos pertencendo ao olho de um furacão violento e genocida, o último ralo do último cano no último esgoto da periferia. Esqueça a correção do método, o cronômetro, tua expressão, a medida e o som. Atente ao motivo.