Terra Amorfa

quinta, 15 de agosto de 2019

Assim, como uma terra amorfa, minhas vontades estão todas nulas, as próprias folhas caem desde o alto, onde não é paisagem, onde não são pensamento, onde alimentam o mesmo chão do qual se come, sem separação, sem dúvidas sobre seu proceder, sem nenhuma ideia de culpa ou inocência, débito ou crédito, vão fazendo folhas para beber luz solar e depois dividem, como uma grande divindade sem contornos, que não está separada, não é criadora da natureza, mas algo muito anterior e posterior a isso, elas vertem sim, luz em alimento, e distribuem para o chão e todas as criaturas que nele vivem, fazem isso, e nesse mesmo chão suas raízes são abrigos e esconderijo, são camuflagem, não artigo decorativo, não são bonitas ou feias, são assim como o ar entre uma e outra, ou eu e ela, que sou esta terra amorfa, sim, repito estou comendo, pisaram e do pior fizeram sobre mim e também das coisas mais gloriosas fui testemunha, de ideias de posse e de libertação fui sujeita e objeto, mas permaneceram ideias, ideias nas quais conceberam minha inocência, minha importância, e para isso, conceberam também, alguma culpa, alguma irrelevância que não havia — jamais olharam como me olham os seres que de mim mesma são feitos, muito embora sejam — e por isso precisam sempre achar um entre os seus para ser dividido, como se nesse sacrifício provassem algo para si mesmos. Optar entre fazer o bem sete ou oito vezes e três ou duas o mal, não conseguir, simplesmente, proceder de um só golpe nesta vida, onde tudo é como um carro que se coloca nesta ou noutra pista, e força-se assim, tenta-se ser sísifo, ser cristo, ser mitólogo, ou mito, ou também conquistar, ser idólatra, ou ídolo, mas ideias de sucesso são feitas de lixo. Não querem ser consciência exposta, de vaidade comum e passível de riso — preferem ser gênero, ser produção, ser algo rígido, uma forma feita, bem definida, que ao morrer torna-se pedra com o nome escrito... Não sou este corpo com nome e documento, com direito, emprego, pai, mãe, marido, sou o grande corpo solto na cidade, sou o risco, a transmissão, sou o gênero humano, diverso e nativo.