quarta, 19 de fevereiro de 2014
hoje foram as horas
elas quebravam contra o relógio
honestas e translúcidas
sem medo nem guerra
passavam me lembrando
do dia da minha morte
dos meus olhos astigmatas
das águas nas fontes que nunca bebi
a brisa gelada e pontuda desde a ponte pênsil
enchia minhas pálpebras de fumaça
elas se enchiam de morte e silêncio
e eu chorava
as horas sujavam minhas lentes
passavam cheias e volumosas
e o rímel de ontem nas lentes riscava
poesias que eu nunca escrevi
o frio cortava meus lábios
que meus dentes comiam aflitos
e as horas voltavam em círculos
como sardinhas contra a maré
e as paredes sozinhas me olhavam
e douravam, azulavam e enegreciam
melancólica eu as via emagrecendo
e eu chorava
e meu peito ardia de morte
a cada trago a garganta doía
do fumo curtido e da palha de milho
que curava as ânsias que nunca senti
as horas vinham e me enxaguavam
e riscavam meu rosto de travesti
eu via na água o rosto da morte
e a morte era fraca, breve e anil
e o coro dos porcos do lado de fora
cantava melodias que jamais ouvi
e riscava às vezes contra as paredes
desenhos dos frutos doces daqui
eu que os colhia sorrindo
hoje do gosto chorando lembrava
encarava insólita as árvores mortas
e eu chorava
e às gárgulas tenras e doces
os sorrisos retribuía com frieza
e cada dente de fora era uma mentira
que me convencia de que eu tinha beleza
e os córneos das vacas lá fora pastando
eram das feras sinal de nobreza
e elas galopavam com seus cascos intactos
comendo dos matos que nunca comi
e eu que sem medo escrevia das vacas
a poesia das suas peles famosas
e o brilho dos olhos de mulheres poderosas
guerreiras de sangue que não conheci
e das pétreas cascatas que eu ouvia
de longe esculpindo com água o perigo
recheadas de peixes com dentes e cobras
plantando lá medos que nunca senti
e eu me lembrava sozinha
da vida sem graça que não vivi
e calada eu sofria isolada
morrendo a morte que nunca morri
e quando as gárgulas quebraram
e voaram pra longe ainda sorrindo
eu olhei suas costas musculosas e duras
e seus cascalhos contra meu casebre a cair
eu me deslumbrei e até hoje me lembro
de quando partiram e fiquei sozinha
e todas as frutas caíram das árvores
sem sementes nem suco e nem poesia
era que agora as horas chegaram
redondas e cheias como as bolhas do rio
e varreram de mim e da grama então seca
os vestígios coloridos de vida e de frio
eu vi os espíritos dos porcos saindo cansados
e deitei sobre as bacias das vacas mortas
e a cascata aquietou-se num estrondo seco
e nem a brisa gelada mais me visitava